segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Resenha: As crônicas marcianas


Vinte e seis contos que podem ser lidos de forma independente ou sequencial, formando uma história única, cobrindo um período que vai de 1999 a 2026. É uma trama futurista, com contos publicados durante a década 40 em uma revista e reunidos pelo autor em um livro em 1950.

O único conto que se passa na Terra é o primeiro, que conta brevemente sobre o lançamento de um foguete. Do segundo em diante, todos se passam em Marte; alguns são narrados pelos marcianos, outros pelos terráqueos. Em cada história há uma sensação de estranhamento, tanto dos humanos (e nesta categoria incluo os exploradores do planeta vermelho e o próprio leitor), diante de um cenário tão diferente, quanto dos nativos de Marte, frente a seres estrangeiros com um comportamento destrutivo tão desconcertante.

Em geral, o livro explora as diferenças entre marcianos e terráqueos, exaltando as belezas peculiares de um planeta distante, o modo de vida simples e harmonioso de seus habitantes e o vasto conhecimento dos extraterrestres, que é usado de modo racional e respeitoso com todas as formas de vida, em contraposição às atitudes predatórias baseadas no falso senso de superioridade da raça humana, que não sabe lidar com o que não conhece e que não está nada interessada em observar, escutar e aprender.

Interessante que eu tenha lido esse livro pouco depois de ter assistido ao filme 'A chegada', que fala justamente sobre essa falha de comunicação (com extraterrestres e com seres da mesma espécie), essa falta de sensibilidade em lidar com as diferenças, esse senso de urgência em julgar e atacar sem motivo. Em ‘Crônicas Marcianas’ o autor explorou bem isso, evidenciando o quanto essa forma de pensar e agir é ridícula ao incorporar essas características a alguns dos marcianos dos contos ‘Illa’ e ‘Os homens da Terra’, por exemplo.

No primeiro conto, uma marciana começa a ter sonhos recorrentes com um objeto metálico que surge no céu trazendo um ser de outro planeta – um homem – ‘estranhíssimo’ para os padrões deles: alto (quase dois metros de altura), de olhos azuis, cabelos negros e pele branquíssima. Pior: o homem dizia ter vindo da Terra! O marido dela obviamente acha que a esposa está louca – onde já se viu seres vivendo no terceiro planeta a contar do Sol? No segundo, uma equipe de exploradores americanos chega a Marte, cheios de empáfia, proferindo com orgulho que haviam viajado não sei quantos milhões de quilômetros, que esperavam ser recebidos com uma festa, que exigiam falar com o governante, e mais uma série de bobagens do tipo. Os marcianos, então, agem como legítimos humanos: não acreditam nos astronautas, empurram o grupo de um lugar para o outro, soterram os folgados em burocracia... é bem divertido.

O fato é que peguei o livro para ler sem expectativa nenhuma e achei incrível. A história sobre a colonização de Marte pelos terráqueos, que, como sempre, se acham melhores do que todos os outros seres vivos e deixam um rastro de destruição por onde passam, é uma trama de ficção científica, mas não poderia ser mais realista. Recomendo muitíssimo.

“– (...) Para qualquer lugar que olho, vejo que as coisas foram usadas, tocadas e manuseadas durante séculos. Pergunte-me, então, se eu acredito no espírito das coisas pela maneira como foram usadas, e responderei que sim. Estão todas aqui. Todas as coisas que tiveram alguma função. Todas as montanhas que tiveram nomes. E nunca seremos capazes de usá-las sem nos sentirmos desconfortáveis. E, de algum modo, as montanhas nunca vão parecer adequadas para nós; vamos dar-lhe nomes, mas os nomes antigos estão lá, em algum lugar no tempo, e as montanhas foram moldadas e vistas com esses nomes. Os nomes que daremos aos canais, às montanhas e às cidades vão escorrer como água nas costas de patos. Por mais que nos aproximemos de Marte, nunca o tocaremos. E ficaremos bravos por isso, e o senhor sabe o que vamos fazer? Vamos despedaçá-lo, arrancar sua pele e transformá-lo à nossa imagem e semelhança.
– Não vamos destruir Marte – disse o capitão  É grande e bom demais.
– O senhor acha que não? Os homens da Terra têm talento para acabar com coisas grandes e belas. A única razão por que não montamos barraquinhas de cachorro-quente no meio do templo Karnak, no Egito, é porque estava fora de mão e não era uma grande oportunidade comercial. E o Egito é uma pequena parte da Terra. Mas aqui, tudo é antigo e diferente, e precisamos nos fixar em algum lugar para começar a estragá-lo. Vamos batizar o canal de Canal Rockfeller, e a montanha de Montanha Rei George, e o mar de Mar de Dupont, e haverá cidades chamadas Roosevelt, Lincoln e Coolidge, coisa sem nenhum sentido, porque existem nomes adequados para todos esses lugares." 

Nota: 4/5

Este post faz parte do Desafio Volta ao Mundo em 80 Livros: [Estados Unidos].
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