sexta-feira, 10 de março de 2017

[Do fundo do baú] Resenha: A Invenção das Asas


“A Invenção das Asas” conta a história de duas garotas que aparentemente não tinham nada em comum, mas que se tornaram amigas. Ao longo de 35 anos, elas se aproximam e se afastam, cada uma delas lutando como pode para ter seus anseios realizados, mas ambas com a mesma ambição profunda e latente: conseguir a liberdade.

Com uma trama delicada e envolvente e personagens fortes e determinadas, o livro me conquistou logo nas primeiras páginas. Indo muito além da luta contra a escravidão, Sarah e Encrenca batalham também pelo direito de igualdade das mulheres (isso tudo lá no início do Século XIX). Pois é. Já deu para notar que a trajetória de nossas protagonistas não foi nada fácil, né?

A história tem início em 1803 em Charleston, Sul dos Estados Unidos. Sarah é filha de um poderoso jurista da região e, inspirada pelo pai, invade frequentemente a biblioteca dele, seu paraíso particular. No seu refúgio secreto, passa horas lendo o que bem entende (uma atividade raríssima numa época em que mulheres mal aprendiam a ler), sonha em ser advogada e escreve, como treino, cartas de alforria. Em seu aniversário de 11 anos, ganha uma escrava negra como dama de companhia, como era tradição entre as abastadas famílias escravocratas sulistas. Indignada, tenta libertar a garota ou devolvê-la à mãe. Obviamente não obtém sucesso.

A escrava designada a Sarah é a jovem Hetty, vulgo Encrenca, de 10 anos. Tão perdida quanto sua jovem sinhá, ela não sabe o que fazer, como se comportar. Sente falta da mãe, de quem deve dormir separada desse momento em diante. Aos poucos, as garotas criam intimidade e trocam confidências. Se transformam em melhores amigas. E Sarah, atendendo a um pedido comovente da mãe de Encrenca, promete a ela que fará tudo o que estiver ao seu alcance para libertar a amiga um dia.

Com o passar dos anos, os interesses de Sarah e Encrenca mudam e as diferenças que pareciam tão pequenas na infância aumentam cada vez mais o abismo entre as amigas. Sarah fica mais focada em sua própria vida, tem inúmeros compromissos sociais, passa por desilusões, luta contra a gagueira, perde o rumo e percebe que a promessa que havia feito à mãe de Encrenca seria mais difícil de cumprir do que havia imaginado.

Por outro lado, Encrenca percebe mais claramente as diferenças entre o seu mundo e o de Sarah, se ressente da amiga, entende que deve lutar por si mesma, se liga cada vez mais à sua origem africana e se torna mais rebelde, mais desconfiada e mais perigosa. Faz a grande revelação à amiga: Encrenca, como escrava, tinha o corpo aprisionado mas a mente vagava por onde queria; Sarah, a garota branca e rica, podia ir onde quisesse, mas não ousava pensar livremente.

Além do estilo simples da escrita e da forma como a narrativa é estruturada - capítulos intercalados da visão de Sarah e Encrenca - a história fala de sonhos, de família, de amizade e do poder de superação presente em cada mulher (escrava ou livre). Durante toda a história, vemos como Sarah e Encrenca (e, mais para a metade do livro, Nina – irmã de Sarah) lutam contra os preconceitos e para impor suas vontades. 

Sarah enfrenta a desilusão por não poder seguir a carreira de advogada (imaginem uma mulher estudando e trabalhando!), sofre por não se encaixar nos padrões da sociedade (não era bonita, gaguejava, não se interessava por prendas domésticas e futilidades), é humilhada pelo homem que amou, direciona seu empenho para a religião e, mais uma vez, se vê em uma posição inferior só pelo fato de ser mulher; é obrigada, sempre, a escolher entre família amor ou realização pessoal, entre a luta pela libertação dos escravos ou pelos direitos femininos.

Encrenca, por sua vez, tenta lidar com as injustiças da vida e com o afastamento da amiga, torna-se cada vez mais dura, aprende, com a mãe, a importância de suas raízes, aperfeiçoa-se na arte da mentira para sobreviver, fica dividida entre o amor e a liberdade, se envolve na luta armada e percebe, com tristeza, que não há mudanças sem sofrimento e perdas.

Extra: Sarah Grimké e sua irmã, Nina, foram pessoas reais, as primeiras feministas e abolicionistas dos Estados Unidos. A autora conta, nas páginas finais, como tomou conhecimento dessas personagens tão importantes para a história e que, convenientemente, tiveram seus feitos apagados dos livros escolares. Tomando por base fatos verídicos da vida das irmãs, Sue Monk Kidd criou algumas situações e personagens e desenvolveu seu livro. 

“Ela abaixou o livro e veio onde eu estava, perto da lareira, e colocou os braços em volta de mim. Era difícil saber em que pé as coisas estavam. As pessoas dizem que o amor fica manchado por uma diferença tão grande quanto a nossa. Eu não sabia ao certo se os sentimentos da Srta. Sarah vinham do amor ou da culpa. Eu não sabia se os meus vinham do amor ou da necessidade de segurança. Ela me amava e tinha pena de mim. E eu amava e usava a Srta. Sarah. Nunca foi simples. Naquele dia, nossos corações estavam puros como jamais estariam.”

Nota: 4/5

[Post editado - Veja AQUI o texto originalmente publicado em 21/04/2014 no ConversaCult] 

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