terça-feira, 24 de abril de 2012

Desafio Literário 2012: Do Outro Lado (Natsuo Kirino)


É em um cenário desolador e opressivo, no Japão, que se passa nossa história. Na fábrica de refeições prontas “Alimentos Miyoshi” foi onde se conheceram as quatro mulheres que, por uma série de eventos infelizes, acabam esquartejando o marido de uma delas. Junto com o grande contingente de brasileiros de descendência japonesa e com as várias outras donas de casa de meia-idade, elas trabalham em meio-expediente no turno da noite, realizando um trabalho físico vigoroso em ritmo de máquinas. Embora tenham personalidades completamente diferentes, elas se unem para resolver o incidente, pois sabem que não poderiam contar com a ajuda de ninguém, principalmente pelo fato de serem mulheres.


“Ódio: é o nome deste sentimento. A ideia ocorreu a Yayoi Yamamoto enquanto fitava seu corpo de trinta e quatro anos nu no espelho. Bem perto do plexo solar, um evidente hematoma azul-escuro. Seu marido acertara-lhe um soco nessa região na noite passada, e, com o golpe, um novo sentimento nasceu dentro dela. Não, não era exatamente verdade. O sentimento já existia havia tempo. Fez um gesto com a cabeça e a mulher nua no espelho repetiu. Definitivamente o sentimento já existia, só que Yayoi nunca fora capaz de nomear.”
(páginas 63-64)
  
Tudo começa quando Yayoi Yamamoto estrangula o marido. Ela é uma jovem bonita, com 2 filhos pequenos. Mais uma vítima de violência doméstica que sofria em silêncio enquanto o marido gastava todas as economias do casal com prostitutas e jogos. Quando a oportunidade de se vingar do agressor surge, ela não a desperdiça, embora não tivesse a intenção de matá-lo. Ao ter diante de si o corpo inerte do marido, ela entra em desespero e conta o ocorrido a sua companheira de trabalho, Masako.

Masako Katori é uma mulher de quarenta e três anos, franzina mas muito forte, que dirige um carro velho amassado e com a pintura descascando. É considerada uma mulher durona e sensata pelas companheiras de trabalho. Em casa, enfrenta a solidão, pois vive com o marido, que prefere manter-se isolado em um quarto separado, e com o filho adolescente, que simplesmente foi se tornando distante, até deixar de falar. Sem saber muito bem o que fazer, mas com grande senso prático, ela decide ajudar a amiga, para ver se, de quebra, consegue sair do torpor que é sua vida. Quando percebe que precisa de ajuda para dar fim ao corpo, divide a história com Yoshie.

Yoshie Azuma é uma viúva na casa dos 60 anos, conhecida como “Capitã” por ser a funcionária mais rápida da fábrica e por comandar com mão de ferro a linha de produção. Apesar da idade avançada e do corpo pequeno, ela demonstra um vigor surpreendente no trabalho. Talvez para encobrir a situação precária de sua vida doméstica, já que vive em uma casa minúscula e escura com a filha adolescente exploradora e a ex-sogra acamada. Apesar de resistir à ideia de desmembrar um corpo, ela cede ao saber que receberá pelo serviço. Considerando todas as contas que tem para pagar e também o fato de que está prestes a ser despejada, ela decide que não seria ruim ajudar a resolver o problema das amigas e ainda conseguir dinheiro para ajeitar sua própria vida.

O esquema estava armado e tudo corria bem, até que uma quarta participante não convidada aparece para complicar os planos. A tal participante é Kuniko Jonouchi, mulher de trinta e três anos (embora diga a todos que tem 29), espalhafatosa, gorda e indiscreta, que enxerga na história uma oportunidade para conseguir o dinheiro de que precisava para pagar parte de sua imensa dívida, acumulada graças ao seu consumismo desenfreado.

Embora o livro tenha essas quatro mulheres como personagens principais no início, ao longo da história outras pessoas nos vão sendo apresentadas e ganham mais destaque na trama. É o caso, por exemplo, de Mitsuyoshi Satake, homem de quarenta e três anos, forte e de aparência amedrontadora, dono do cassino e do prostíbulo onde o marido de Yayoi costumava fazer a festa. Aos poucos, vamos conhecendo seu passado negro e sua mente doentia e vemos crescer seu interesse pelo crime praticado pelas mulheres e sua busca pela mulher perfeita (e aqui não estou falando de perfeição física, mas de alguém que poderia compreender suas loucuras).

Uma coisa que me chamou a atenção foi como a autora expõe os problemas femininos no livro. Ela consegue mostrar sem rodeios como a mulher é tratada na sociedade atual, principalmente no Japão: o desafio de ser mãe-mulher-esposa-profissional, o preconceito e o fetiche dos japoneses por colegiais.

Outro ponto interessante é a presença de brasileiros nas fábricas. Nos últimos anos até que esse movimento diminuiu um pouco, mas me lembro que nos anos 90 era bem comum os descendentes japoneses irem para o Japão a fim de juntar dinheiro trabalhando como operários. O cansaço e o sentimento de não-pertencimento são mostrados na forma do funcionário Kazuo Miyamori. Nascido em São Paulo, filho de um imigrante japonês e de uma brasileira, ela vai para o Japão pensando em economizar para comprar um carro quando retornar ao Brasil, depois de 2 anos. No entanto, no Japão ele é estrangeiro, não se mistura com o pessoal local, sente falta do calor do Brasil, da comida, dos amigos, do futebol.

Com uma trama bem amarrada e cheia de surpresas, o livro é altamente viciante e, no fundo, mostra como somos todos solitários e o que fazemos para tentar nos livrar dessa condição. A forma mecânica como as mulheres tratam o corpo do marido de Yayoi deixa claro que somos apenas peças de uma grande engrenagem e que, no fim, seremos reduzidos a nada como todas as outras coisas.

“Masako ficou olhando para a pele opaca e pálida de sua careca. Se fosse possível esquecer-se das ‘partes interessadas’, um cadáver era realmente uma coisa ser descartada como qualquer outro tipo de lixo. O lixo é um derivado natural da vida humana; e não é da conta de mais ninguém o que se joga fora ou quem o faz. Você só tem que, quando a sua hora chegar, estar disposto a aceitar o fato de que também será descartado junto com os restos”.
(página 387)

“Do Outro Lado” é vencedor do Grande Prêmio Japonês de Melhor Romance Policial. Natsuo Kirino é japonesa, formada em direito, e trabalhou em várias áreas antes de se tornar escritora. É autora de 13 romances e 3 livros de conto. Este é o primeiro romance da autora a ser publicado no Brasil. Espero que publiquem os outros logo!

Este post faz parte do Desafio Literário 2012 - Tema de Abril: Escritores Orientais. Para ver minha lista de livros selecionados e outras resenhas já postadas, CLIQUE AQUI.

7 comentários:

Karla disse...

Parece ser uma boa história. Ah gosto muito da arte oriental.... beijos!

Andreia Inoue disse...

Esse foi um dos melhores livros que li no ano passado.
Apesar de ser meio macabro, o livro foi muito bom e muito bem elaborado.Uma das coisas que mais gostei,foi da quantidade de personagens. Teve os principais mas os secundarios tambem foram muito bem explorados,adorei mesmo.
Do outro lado,eh daqueles livros que vale a pena ler.

Mi Müller disse...

Oi xará :D
Adorei tua resenha, fiquei com vontade de ler esse livro, não conheço quase nada de literatura japonesa, acho que só li Kenzaburo Oe, acho que vou ler essa moça ai hehehehe
estrelinhas coloridas...

teste disse...

Olá, Michelle!
A sua resenha ficou maravilhosa! Apesar de não ter muito contato com a literatura japonesa, fiquei com vontade de ler esse livro!
Beijos!

Biih
http://hellostar.org

Sylvia Cheleiro disse...

Enfim chegou a minha vez de ler esse livro, era um dos meus desejados.
E se é vencedor de premio fica ainda melhor.
Obrigada.

Lígia disse...

Oi, gostei bastante da sua resenha!
Também li um livro dessa autora para o DL e foi uma boa surpresa. Esse aí que você leu parece ser mais interessante, e se tem edição em português é melhor ainda. :)

Vivi disse...

Que coisa boa de ler parece ser!